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Câmara dos Deputados aprova o PLC que regulamenta a reforma tributária sobre o consumo

Publicado por: José Ricardo de Bastos Martins

Área relacionada: Contencioso Cível

Split payment, cashback, fim da guerra fiscal: confira as inovações e promessas trazidas pela reforma tributária ao Sistema Tributária Nacional

Quase ano depois da publicação da Emenda Constitucional n. 132/2023, que marcou o início da maior reforma tributária no país desde 1988, o Congresso Nacional, em um esforço político equilibrado com a técnica tributária, aprovou uma das principais leis que regulamentam a tributação do consumo e que agora segue para sanção presidencial.

No dia 17/12/2024 (terça-feira), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar n. 68 de 2024 (PLP 68/2024), que regulamenta a reforma dos tributos incidentes sobre o consumo, iniciada pela Emenda Constitucional n. 32 de 2023 (EC 132/2023).

É um momento histórico para o Direito Tributário no Brasil, em que há décadas se discute a necessidade de uma reforma abrangente do Sistema Tributário Nacional, sobretudo em relação aos tributos incidentes sobre o consumo, os quais possuem grande impacto na vida nacional, tanto para os produtores e vendedores de bens e mercadorias, quanto para os prestadores de serviços em geral e, claro, consumidores e a sociedade como um todo.

A necessidade de uma reforma decorre da complexidade da sistemática atual, em que há cinco tributos incidentes sobre o consumo, com pouca transparência em relação à carga tributária efetiva, além da necessidade de cumprimento de diversas obrigações acessórias por parte dos contribuintes para manterem-se em conformidade com a legislação tributária.

Um dos objetivos principais desta reforma é a adoção de uma lógica uniforme para os tributos incidentes sobre o consumo, já que atualmente, cada um dos tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins) segue a sua própria lógica, sistemática, administração, metodologia e arcabouço de obrigações acessórias e infindáveis declarações e diferentes procedimentos exigidos por diferentes 27 legislações estaduais e mais 5.500 legislações municipais.

Em estudo que compara a regulamentação dos negócios em 190 países realizado pelo Banco Mundial em 2020 (disponível em https://archive.doingbusiness.org/en/data/exploreeconomies/brazil), calculou-se que uma empresa deve dedicar, em média, 1501 horas por ano para cumprir as obrigações tributárias no Brasil, ficando na posição 184 entre os países avaliados (a média dos países da América Latina é de 317 horas, enquanto dos países da OCDE é de 158 horas).

O PLP 68/2024 institui três tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). A adoção do IBS e da CBS corresponde à implementação de um modelo de Imposto sobre Valor Agregado dual (IVA dual), de forma que os recursos arrecadados através do IBS serão destinados aos Estados e Municípios e os recursos da CBS serão destinados à União. O IBS substituirá o ICMS, de competência estadual, e o ISS, de competência municipal. Por sua vez, a CBS substituirá o PIS, a Cofins e o IPI, todos de competência da União. Já o Imposto Seletivo (IS) terá função principal de ser extrafiscal, incidindo sobre produtos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, em linha com o princípio da seletividade tributária, função que atualmente é parcialmente cumprida pelo IPI. Esse último ainda prevalecerá sobre determinadas operações na Zona Franca de Manaus.

A adoção do modelo do IVA dual e a extinção (parcial) dos cinco tributos atualmente existentes possui como um de seus objetivos dar maior transparência à carga tributária suportada pelos brasileiros, já que o sistema atual mistura tributos cumulativos e não cumulativos, bem como tributos cujo cálculo é realizado “por dentro” (incidindo sobre si mesmo como parte do preço do bem ou serviço) e tributos cujo cálculo é realizado “por fora”.

No sistema instituído pelo PLP 68/2024, a tributação será não-cumulativa, ou seja, os tributos incidirão sobre o valor adicionado em cada etapa da produção, com a possibilidade de as empresas tomarem créditos, de forma ampla, em relação aos pagamentos de valores de IBS e de CBS em etapas anteriores da cadeia de produção. Mesmo as empresas do Simples Nacional poderão optar pelo regime do IVA aplicável às empresas do Lucro Presumido e do Lucro Real, devendo manter a sua escrituração contábil regular para gerar e aproveitar os créditos da não-cumulatividade. As empresas do Simples Nacional que não fizerem essa opção estarão proibidas de apropriarem-se de créditos do IBS e da CBS, fator que poderá ter impacto relevante na dinâmica em como o mercado irá se comportar.

O contribuinte do IBS e da CBS poderá apropriar créditos destes tributos quando houver o pagamento dos valores do IBS e da CBS incidentes sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou de serviço, excetuadas:

  • As operações consideradas de uso ou consumo pessoal;
  • As aquisições de joias, pedras e metais preciosos; obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico; bebidas alcóolicas; derivados do tabaco; armas e munições; e bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos, exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte, sendo considerados necessários quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados, ou no caso de armas e munições quando forem utilizados por empresas de segurança, ou no caso de bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos, quando forem utilizados pelos adquirentes dos bens e serviços do contribuinte em estabelecimento físico.

Os créditos do IBS e da CBS apropriados em cada período de apuração poderão ser utilizados, na seguinte ordem, mediante:

  • Compensação, respectivamente, de IBS e de CBS, incidentes sobre as operações ocorridas no mesmo período de apuração;
  • Compensação com o saldo devedor não pago, respectivamente, do IBS e da CBS referentes a períodos de apuração anteriores;
  • Solicitação de ressarcimento;
  • Compensação, respectivamente, com o IBS e a CBS incidentes sobre operações ocorridas em períodos de apuração subsequentes.

A imunidade e a isenção (exceto sobre exportações) acarretarão a anulação dos créditos relativos às operações anteriores. Em caso de operações sujeitas à alíquota zero, será mantido o crédito relativo às operações anteriores.

Outro objetivo da reforma dos tributos incidentes sobre o consumo é mitigar os efeitos da chamada “guerra fiscal”, assim entendida como a competitividade entre os entes federativos para a atração de negócios pela instituição de benefícios fiscais e alíquotas reduzidas. Para este fim, o PLP 68/2024 prevê que a tributação ocorrerá no destino do bem ou do serviço, em contraste com o sistema atual, em que a tributação ocorre na origem, o que possui o efeito de incentivar os entes federativos a competirem entre si, concedendo benefícios e reduzindo alíquotas para atrair empresas a se estabelecerem em seus limites territoriais.

Além disso, o PLP 68/2024 busca reduzir drasticamente o número de benefícios fiscais atualmente existentes nos tributos sobre o consumo, os quais variam de acordo com o setor da atividade econômica e da localização dos estabelecimentos. Como forma de mitigar o impacto da eliminação de diversos benefícios fiscais, o PLP 68/2024 prevê a criação de um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, pelo qual as pessoas que detêm o direito à fruição de isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais regularmente concedidos até 31 de maio de 2023, serão compensadas de acordo com os critérios e limites para apuração do nível de benefícios e de sua redução.

Ademais, o PLP 68/2024 prevê regimes diferenciados do IBS e da CBS, uniformizando em todo o território nacional os benefícios fiscais na tributação sobre o consumo. Contemplam a redução das alíquotas do IBS e da CBS ou concessão de créditos presumidos, para os seguintes bens e serviços:

  • Atividades intelectuais de natureza científica, literária ou artística, submetidas à fiscalização por conselho profissional terão redução em 30% das alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre a prestação de serviços;
  • Operações relativas a serviços de educação; serviços de saúde arrolados no Anexo III do PLP 68/2024; dispositivos médicos arrolados no Anexo IV do PLP 68/2024; dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência arrolados no Anexo V do PLP 68/2024; medicamentos arrolados no Anexo VI do PLP 68/2024; produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; alimentos destinados ao consumo humano; produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda; produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários e aquícolas; produções nacionais artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais; comunicação institucional; atividades desportivas; e bens e serviços relacionados a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética terão redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS;
  • Operações relativas a dispositivos médicos arrolados no Anexo XIII do PLP 68/2024; dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência arrolados no Anexo XIV do PLP 68/2024; medicamentos arrolados no Anexo XV do PLP 68/2024; automóveis de passageiros adquiridos por pessoas com deficiência ou com transtorno do espectro autista; automóveis de passageiros adquiridos por motoristas profissionais que destinem o automóvel à utilização na categoria de aluguel (táxi); e serviços prestados por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação – ICT sem fins lucrativos terão as alíquotas do IBS e da CBS reduzidas a zero;
  • Haverá a concessão de crédito presumido do IBS e da CBS aos adquirentes em relação aos bens e serviços adquiridos de produtor rural e produtor rural integrado cuja receita no ano-calendário seja inferior a R$ 3,6 milhões e que não opte por ser contribuinte do IBS e da CBS; de serviços de transportador autônomo de carga pessoa física não contribuinte; de resíduos e demais materiais destinados à reciclagem, reutilização ou logística reversa vendidos por coletores incentivados, suas cooperativas e associações de cooperativas; e de bens móveis usados de pessoa física não contribuinte para revenda.

O PLP 68/2024 traz ainda extensa regulamentação sobre regimes específicos de tributação aos seguintes segmentos:

  • Setor combustíveis
  • Serviços financeiros
  • Planos de assistência à saúde
  • Concurso de prognósticos
  • Operações com bens imóveis, com a criação das novas ferramentas do redutor de ajuste e redutor social
  • Sociedades Cooperativas
  • Setor de bares, restaurantes, hotelaria, parques de diversão/temáticos, transporte coletivo de passageiros e agências de viagem e turismo
  • As SAF – Sociedade Anônima do Futebol
  • Missões diplomáticas, repartições consulares e operações alcançadas por tratado internacional

Ainda, o PLP 68/2024 prevê importante novidade no que diz à técnica arrecadatória intitulada como split payment (pagamento dividido, em tradução livre). Trata-se de técnica de recolhimento na liquidação financeira do pagamento pelo bem ou serviço, através da qual o recolhimento dos tributos ocorrerá automaticamente quando houver o pagamento para o bem ou serviço, devendo o sujeito passivo efetuar a segregação na documentação fiscal do valor correspondente aos tributos incidentes à operação, de forma que parte do valor do pagamento irá ao fornecedor ou prestador, e a outra parte irá diretamente à Administração Tributária.

Como o split payment está vinculado com a liquidação financeira do pagamento, será disponível apenas em caso de pagamento por Pix, cartão de crédito, TED ou boleto, com a obrigação pelo vendedor ou prestador de vincular os documentos fiscais da operação com a transação de pagamento correspondente. O sujeito passivo poderá, ainda, optar por procedimento simplificado, pelo qual o valor a ser segregado e recolhido pelo prestador de serviço de pagamento corresponderá a percentual pré-estabelecido pela Administração Tributária e será aplicado a todas as operações do sujeito passivo, independentemente do valor do IBS e da CBS efetivamente incidentes sobre cada operação. O procedimento simplificado aplica-se somente às operações que não dão direito a crédito da não-cumulatividade pelo adquirente, como as vendas ao consumidor final efetuadas pelos varejistas.

A instituição e o funcionamento do split payment serão decisivos para o sucesso (ou insucesso) da reforma e implicará a colaboração por parte dos fornecedores de serviços de pagamentos do Sistema Financeiro Nacional.

Outra inovação relevante trazida pelo PLP 68/2024 é a instituição do cashback, ou devolução personalizada do IBS e da CBS. Trata-se de maneira de prestigiar o princípio da capacidade contributiva e mitigar a regressividade inerente à tributação sobre o consumo, que atinge com maior impacto as pessoas de menor renda disponível. Consiste na devolução para pessoas físicas que forem integrantes de famílias de baixa renda da CBS, pela União, e do IBS, pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. Os destinatários serão os responsáveis por unidades familiares de baixa renda cadastrados no CadÚnico, que possuir renda familiar mensal per capita declarada de até meio salário-mínimo nacional, for residente em território nacional e possuir inscrição ativa no CPF. Os que se encaixarem nestes requisitos serão incluídos de forma automática na sistemática de devoluções, podendo solicitar a sua exclusão.

O PLP 68/2024 prevê que haverá alíquota de referência em relação ao IBS e à CBS que serão fixadas pelo Senado Federal, a partir de cálculo efetuado pelo Tribunal de Contas da União de forma a manter a carga tributária dos tributos atuais.

A equipe tributária do Martins Villac Advogados está a disposição para esclarecer quaisquer dúvidas sobre a reforma, bem como auxiliar na preparação para a transição ao novo regime dos tributos incidentes sobre o consumo.